Resgatar a radicalidade negra 

Uma das coisas que as pessoas não percebem é quão efetivamente a análise radical foi retirada do debate em torno de questões que afetam a vida das pessoas.

–Dhoruba Bin Wahad

Estava lendo uma ótima entrevista da Jurema Werneck, médica e diretora da Anistia Internacional no Brasil, concedida ao Le Monde Diplomatique Brasil, em 2019. 1Ela expôs importantes reflexões naquele contexto em que estávamos sendo governados pela extrema-direita, e sofrendo com a pandemia que varreu sonhos e abreviou a vida de mais de 700 mil pessoas. Mesmo sendo um cenário diferente, as suas colocações ainda são válidas. Pois, sabemos que o racismo, e outras formas de opressão que dão suporte ao capitalismo, tem vida longa. Os nossos ancestrais lutaram; nós estamos lutando, e as futuras gerações continuarão o enfrentamento. 

Ao apreender as palavras de Jurema Werneck, foi inevitável não questionar quais os pontos em que devemos melhorar nas ações antirracistas. O racismo não está apenas na base individual; analisá-lo sob esse prima seria a tentativa de simplificar um problema tão complexo e dinâmico. Não podemos ignorar a dimensão da tragédia provocada pelas instituições brasileiras. 

O racismo é institucionalizado. Ele se alastrou no corpo social. Com isso, os negros sofrem incontáveis violências: sobrevivem na miséria e pobreza, não têm acesso á saúde pública e educação de qualidade, moram em áreas com péssimas condições de saneamento básico, etc. Nesse sentido, a  manutenção desse sistema depende do laço com o imaginário da sociedade, formando subjetividades que não enxergam os negros como pessoas. Assim, o pacto ideológico entre os brancos torna-se resistente.

A entrevistada denunciou o descompasso do Brasil em relação aos direitos humanos, algo que já antecedia o governo do ex-presidente Bolsonaro “O Brasil sempre esteve mal na chave dos direitos humanos. Quem é indígena, quem é negro, quem é mulher, quem é LGBTQIA+, quem é camponês, quem é favelado, quem mora na rua, quem tá na prisão, no sistema socioeducativo, tá cansado de saber que o Brasil tira nota baixa nisso”. Obviamente, com o governo em questão, os retrocessos foram impulsionados. E se considerarmos as alternâncias que ocorreram no Governo Federal, desde a redemocratização, os negros ainda não alcançaram a cidadania plena, a mesma citada pelo intelectual Milton Santos “Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.”

Jurema Werneck nos convoca ao retorno de uma prática radical na militância, o que me leva a pensar nas ações, outrora, do Movimento Negro Unificado (MNU), e de pessoas como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Thereza Santos, José Adão, Milton Barbosa, Regina Santos, Solano Trindade, entre outros, “Eu acho que o desafio para nós é recuperar nosso lugar na radicalidade. A gente tem que continuar lutando pelo que resolve. E sem medo, tem que ser destemido. Não estou dizendo disposto a morrer pela causa, mas disposto a viver pela causa. Eu acho que a gente tem que voltar aos tempos radicais.” Os intelectuais, ativistas e militantes negros lutavam contra a violência policial, o racismo na imprensa, a favor da educação afro-brasileira nas escolas, contra as desigualdades econômicas, enfrentaram a ditadura militar, e inúmeras ações que possibilitasse provocar as instâncias políticas que ignoravam o povo negro como cidadão. 

Por essa característica do passado, percebe-se uma mudança gritante na práxis atual. Vemos doses de inação, distração e ausência de coerência de parcela das pessoas negras que se colocam como engajados no combate ao racismo. Reconheço que temos a Coalizão Negra Por Direitos fazendo um importante trabalho, intelectuais se debruçando em produções para formação de um pensamento crítico, políticos negros levando nossas demandas dentro das Casas Legislativas, artistas valorizando a cultura negra, mas mesmo assim não alcançamos uma dimensão política que seja compatível com a proporção que representamos na população brasileira. Não radicalizamos ao ponto de arrancar o sono da branquitude. A minha impressão é que o sistema conseguiu anestesiar a população negra com excesso de sofrimento, e a  superação exigirá um trabalho intenso. Não existe fórmula pronta, precisamos construir coletivamente estratégias para alcançar outro patamar de comportamento. 

Eu não ignoro que a nossa situação é resultado da influência do neoliberalismo que tornou as condições de vida dos negros penosas, dificultando que pensemos na nossa própria condição. Na sociedade há uma produção de pensamentos egoístas, imediatistas, competitivos, individualistas e desumanos; a espetacularização do cotidiano é celebrada, a dissociação da política de justiça social, em relação às identidades de cada grupo, é prevalente. 

O abismo é tão profundo que até os ganhos simbólicos das mãos dos opressores é o que têm satisfeito os oprimidos. Por fim, que seja urgente a mudança e aprimoramento da resistência negra. Procuremos ir às raízes da nossa história e elaboremos ações concretas para que o futuro incline-se ao objetivo esperado por todos nós: a edificação dos pilares civilizatórios que tenham na essência a justiça social para todos os povos. Werneck fez o convite, não há razões para recusarmos. 


  1.  Entre a emergência e a radicalidade
    Disponível em: <https://diplomatique.org.br/entre-a-emergencia-e-a-radicalidade-2/>. Acesso em 14 jun. 2024
    ↩︎

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SANTOS, Milton. O Espaço do cidadão. 2. ed. São Paulo: Nobel, 1993.GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. 1º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.


Ricardo Corrêa

Escrevo artigos de opinião, exerço a docência e trabalho como consultor na área de tecnologia. Ex-lider comunitário na periferia de São Paulo. Especialista em Educação (IFSP) e Tecnólogo Industrial (IFSP).


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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