Sinto falta de autores negros no Brasil, diz Ondjaki

Aos 37 anos, o escritor angolano Ondjaki tem 19 livros publicados e mais de dez prêmios literários. Mas é preciso cuidar do ego, ele diz. De passagem pela Bahia, o autor integrou uma das mesas da Flica (Festa Literária Internacional de Cachoeira), no último sábado, 1º, ao lado do também escritor Dênisson Padilha Filho. Depois de atender a uma longa fila de autógrafos, ele conversou com nossa reportagem sobre a origem de seu pseudônimo, as razões que o trouxeram a viver no Brasil em 2008 e sua opinião sobre a chamada literatura negra. O autor também falou de tristeza e pessimismo, marcas de sua personalidade, e confessou: sente saudade de casa. Confira trechos.

Por: Daniela Castro

Qual é a parte menos bacana da sua rotina de escritor?

Sinceramente, é o vício que se criou ultimamente de as pessoas registrarem a imagem. Eu não me dou bem com fotografias. Às vezes as pessoas vêm pela mera curiosidade da imagem. Eu não trabalho com a minha imagem, trabalho com imagens escritas. Se a pessoa tem curiosidade em relação ao meu trabalho é só ler os meus livros, não precisa ter uma foto comigo no Facebook. O que mais me incomoda é a mania que se gerou de que tem que se tirar foto com o escritor. Não entendo isso. A foto é para você ou é para mostrar aos outros? Quando a pessoa diz que quer ter uma recordação, eu entendo. Mas há pessoas que só querem a foto pra por no Facebook. Sinceramente, é a única coisa que me incomoda. Vou começar a dizer as pessoas que não tiro mais fotos e vou passar por antipático. Mas minha profissão não é ser simpático.

De onde vem seu pseudônimo?

É um nome do sul de Angola, que significa guerreiro. Adotei no primeiro livro. Eu deveria me chamar Ondjaki mesmo, mas minha mãe mudou de ideia. Quando comecei a escrever fiquei pensando em um pseudônimo e pensei: ‘não preciso inventar porque já tenho um outro nome’. Isso me dá um conforto, porque publicamente sou Ondjaki, mas tem uma forma como as pessoas me tratam em casa. É bom porque dá pra descansar. Quando chego em casa, tenho outra pessoa pra ser.

Para alguém que nunca leu um livro seu, qual você recomendaria para conhecer a essência de sua obra?

Acho que é o Bom Dia, Camaradas. É sobre a minha infância em Luanda, meus professores cubanos, meus pais, minhas irmãs. É uma literatura de ficção muito autobiográfica.

Por que escolheu o Rio de Janeiro para viver?

Me mudei por razões absolutamente pessoais, não foram nem políticas nem literárias. Qualquer dia acaba minha missão e vou para Angola. Faltam quatro ou cinco anos pra ir-me embora.

Então sua missão tem data para terminar?

Tem. Minha missão é uma criança. Estou à espera de que ele cresça um bocadinho. Quando ele crescer, vou para Angola, tenho muita coisa para fazer lá.

Como é a sua relação com a literatura brasileira?

Eu sempre tive uma relação especial com o Brasil, mas que vem a propósito de uma coisa maior. Eu lia muitos autores europeus e de repente comecei a exceder à literatura latino-americana. Primeiro foram os contos e a poesia de Borges, depois Carlos Fuentes, e depois cheguei aos brasileiros, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo. Mais tarde Clarice, Guimarães. E depois, finalmente, Manoel de Barros. Quando cheguei a Manoel de Barros eu disse “meu Deus, quem é este homem que tem esta poesia incrível?”. Mas o Brasil é um país com dimensão continental. A gente não pode terminar de ler o Brasil. Literatura brasileira se frequenta, não se termina. A maneira de contar brasileira nos diz muito sobre a forma angolana de estar no cotidiano. É uma literatura com a qual nos identificamos pela festividade, pela musicalidade. Também leio autores mais jovens como João Paulo Cuenca, Daniel Galera. A literatura brasileira está muito bem, tem muita diversidade, mas há uma coisa da qual eu sinto falta.

O que?

A divulgação e publicação de autores negros. Vá a qualquer livraria, pegue as principais editoras e veja quantos autores negros elas publicam. Num país que tem a quantidade de negros e descendente de índios que tem, não é possível. Alguma coisa de esquisito se passa que só os brasileiros não vêm ou não querem ver.

O que você faz é literatura negra? O que acha desse conceito?

Acho que esse conceito se perdeu muito no tempo. Países como o Brasil e Estados Unidos tratam a questão da negritude e da literatura negra de outra maneira. Em Angola, a maioria da literatura é negra, então essa questão não se coloca. Não faz sentido falar de literatura negra dentro da literatura angolana porque a literatura angolana já é feita por autores negros ou mestiços, o que é normal num país de maioria negra. O que não é normal é neste país não ter governador, senador, juiz negro. E quando a gente liga a televisão e só vê brancos. Eu não tenho absolutamente nada contra brancos. Só não acho normal num país de negros que a publicidade, os programas, as telenovelas tenham 2% ou 5% de negros. Acho que isso é um absurdo. É um problema com o qual o Brasil tem que lidar.

E o que acha de datas como o 20 de novembro?

Em Angola não temos, mas acho que isso é uma resposta de necessidade de um país. Se um país precisa ter o dia, a semana ou o mês da consciência negra, é porque é preciso chamar atenção. Isso diz muito sobre a realidade do país. É como a questão das cotas. No mundo ideal, elas não são necessárias, mas nós não estamos no mundo ideal. Aqui temos mesmo que discutir o lugar do negro em todas as áreas. É necessário ainda.

Você disse que é uma pessoa essencialmente triste e pessimista. Esse sentimento se aplica também em relação a isso?

Não sou pessimista pra fora, sou pessimista pra dentro. Pelo menos salvo o mundo desse pessimismo. Sou pessimista em relação a situações particulares, íntimas. Mas procuro combater esse pessimismo e não o trago nem para minha abordagem pública, nem para minha literatura. Talvez só tenha um livro pessimista, que é Os Transparentes.

E para onde você canaliza sua tristeza?

Para a poesia. Eu sinto que a minha poesia é um pouquinho mais triste do que a minha prosa. Tento que a tristeza não invada tanto a área da prosa.

Em que terreno da literatura você se sente mais à vontade?

O que eu gosto é o conto curto. Quanto mais curto, melhor. É exatamente aí que eu me sinto em casa. Eu faço um enorme esforço para escrever para crianças porque acho que Angola precisa de uma literatura infantil. Escrevo romances quando me acontecem, por isso são poucos.

A literatura infantil é uma missão, então?

No princípio foi uma casualidade. Os dois primeiros livros escrevi tranquilamente porque senti esse chamamento. Depois, já comecei a sentir que tinha que produzir pensando nas crianças de Angola. Mas não é que seja infantil, é aberta de modo que as crianças possam ler. Não posso escrever um livro pra criança cheio de palavrões e cenas eróticas. Por exemplo, O Voo do Golfinho, é um livro muito simples sobre um golfinho que não estava confortável com sua condição e queria ser pássaro. Mas um adulto vê outras coisas nessa ideia. Vê que uma pessoa não tem que ser heterossexual, não tem que ser só de um país, ter só uma personalidade, gostar só de um tipo de música. No livro, o golfinho se transforma em pássaro, mas no final diz: “Se um dia me apetecer, um golfinho volto a ser”.

Comentários negativos sobre seu trabalho te deixam abalado?

O que me deixa abalado é o comentário negativo sem que a pessoa tenha lido o livro. Acho falta de respeito. Também noto isso no comentário positivo. Às vezes a pessoa também elogia sem ter lido. Isso também me deixa triste. De resto, não. Não entendo um livro como uma coisa que a gente escreve pra todo mundo gostar. Eu não escrevo para você ou para dez milhões, eu apenas escrevo.

E como você lida com os prêmios que já recebeu?

Não sei se são positivos. Acho que são mesmo fruto do acaso. Muitas vezes é só o encontro de um livro que você escreveu com um corpo de jurados. Se um livro ganhou um prêmio é porque chamou atenção de um determinado grupo de pessoas, mas não quer dizer mais nada. É preciso ter muito cuidado com o que os prêmios fazem ao ego. Aceito com naturalidade e simplicidade.

Tem algum livro novo sendo produzido?

Estou idealizando o próximo romance, mas não sei quando vai sair. Mas deve ser outra vez em Luanda e outra vez nos anos 80.

É saudade de casa?

Sim, é um pouco isso. E também acho que nós precisamos nos contar a nós próprios para apaziguar nossos medos. Há coisas que precisamos dizer aos outros e coisas que precisamos dizer a nós mesmos. O livro é uma maneira.

Durante a mesa você disse que vai escrever um livro pra se vingar de um vizinho da infância. O que foi que ele te fez?

Durante uma semana, ele deixava bilhetes na minha casa, na minha mochila, no meu portão, como se fosse um dos maiores bandidos de Angola querendo me matar. Eu fui falar com ele que o bandido estava me perseguindo e ele ficou oito dias desfrutando do meu medo. Não consigo perdoá-lo, então vou me vingar por via literária.

 

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Fonte: A Tarde 

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