Tempo da maldade

Ampliar militarização da segurança pública, proposta de muitos candidatos, é insistir em receita fracassada

por Oscar Vilhena no Folha

Bruna Silva no velório de seu filho, Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, baleado durante tiroteio na favela da Maré – Domingos Peixoto/Agência O Globo

A imagem de um helicóptero disparando indiscriminadamente para o solo parecia saltar de um documentário sobre a guerra do Vietnã. Tratava-se, no entanto, de um helicóptero da polícia, chamado de “caveirão voador”. O alvo não eram os vietcongues, mas sim a população civil da comunidade da Maré.

A cena apocalíptica fez parte de uma operação da polícia do Rio de Janeiro, com apoio logístico das Forças Armadas, que tinha por objetivo declarado cumprir 23 mandados de prisão. O resultado foi a morte de sete pessoas, entre as quais Marcos Vinícius, de 14 anos, que buscava chegar à escola. Nenhuma pessoa foi presa.

Alvejado pelas costas, ao tentar se proteger do tiroteio, Marcos Vinícius foi levado a Unidade de Pronto Atendimento da Maré. A mãe de Marcos, Bruna Silva, conseguiu chegar ao local enquanto o filho ainda estava vivo. Marcos Vinicius lhe disse que o tiro teria partido de um “blindado” e perguntou: “ele não viu que eu estava com roupa de escola, mãe?”

De acordo com a equipe da organização Redes da Maré, o chão da comunidade está com muitas marcas de tiros e munição. Perto das escolas do Campus da Maré 2 e da creche da Vila dos Pinheiros, foram registradas mais de cem marcas de tiros. As mortes de Marcos Vinícius e mais seis “suspeitos” não podem, assim, ser consideradas um acidente, mas sim fruto de mais uma operação negligente e brutal.

Marcos Vinícius foi velado no Palácio da Cidade, sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, recebendo a consideração que lhe foi negada em vida. Nos últimos 30 anos mais de 1 milhão de pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil.

Em sua grande maioria são jovens negros, do sexo masculino, moradores de nossas periferias sociais, como noticia o Atlas da Violência 2018, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Ipea. De acordo com o mesmo relatório, apenas em 2016, foram 4.222 pessoas mortas em função de intervenções policiais.

Operações bélicas, como a que vitimou Marcos Vinícius e mais seis pessoas na Maré, além de contrárias aos princípios mais básicos do Estado de Direito, têm se demonstrado absolutamente incapazes de promover a pacificação da sociedade e a redução da criminalidade.

A democratização não trouxe consigo um novo sistema de segurança. Grande parte da responsabilidade pela segurança pública permaneceu com as polícias militares. Com o crescimento da violência e a perda do controle sobre a criminalidade em diversas unidades da federação, a União passou a recorrer de forma cada vez mais frequente às Forças Armadas.

Entre 2010 e 2017 as Forças Armadas foram acionadas 29 vezes para realizar operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), culminando com a decretação da intervenção federal no Rio de Janeiro, liderada por um general. Como já antecipava o comandante do Exército, em 2017, essas operações são inócuas.
Entre os múltiplos desafios que se colocam à sociedade brasileira nas próximas eleições está o de conter o forte processo de banalização do direito à vida —o que passa por uma profunda reforma do sistema de segurança, pautada na qualificação profissional, valorização, inteligência, tecnologia, controle e integridade das forças policiais.

Ampliar a militarização da segurança pública, como têm proposto muitos candidatos, é insistir numa receita fracassada. Fazer da Maré um novo Vietnã definitivamente não é a solução para a segurança pública no Brasil.


Oscar Vilhena Vieira

Professor de direito constitucional da FGV-SP, é doutor pela USP e tem pós-doutorado por Oxford.

+ sobre o tema

Negros são 77% dos mortos pela polícia do Rio em 2015

De acordo com dados do ISP (Instituto de Segurança...

Caso Genivaldo: PRF retirou direitos humanos do curso de formação de agentes

Todos os policiais que ingressam na PRF são obrigados...

Na terra pioneira da abolição, Lula volta a defender política de cotas

No Ceará, ex-presidente recebe 13º título de doutor honoris...

para lembrar

Dia da Consciência Negra: para conquistar o orgulho é preciso resgatar origens, diz pesquisador

Em 20 de novembro de 1695 morreu Zumbi dos Palmares, símbolo da...

A polícia pode exigir celular e senha em abordagens?

É comum presenciar policiais militares abordando pessoas pelas ruas...

Cotas na UnB: carta da SEPPIR enviada aos jornais O Globo e O Estado de São Paulo

Em sintonia com o espírito democrático vivenciado em nosso...
spot_imgspot_img

OAB suspende registro de advogada presa por injúria racial em aeroporto

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) suspendeu, nesta terça-feira (25), o registro da advogada Luana Otoni de Paula. Ela foi presa por injúria racial e...

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....
-+=