Tortura versus Constituição

A ditadura militar de 1964-1985 teve entre seus principais fundamentos a doutrina de segurança nacional e seus elementos integradores: a identificação de toda oposição ao regime como guerra psicológica adversa e de todo opositor como inimigo interno.

Mas, de forma não menos importante, o governo militar incorporou a impossibilidade de contraste judicial de seus atos e a eliminação do habeas corpus, o que viria com o AI 5, em 1968, no chamado golpe dentro do golpe. A ideia de guerra já havia trazido a competência da Justiça Militar federal para julgar os inimigos do Estado.

Na prática, esse conjunto de circunstâncias permitiu a instalação de lugares de detenção clandestinos, constituiu uma autorização velada para atuação, sem controle, da polícia política, militar e civil (Oban / Dops / Cenimar / DOI-CODI, entre outros) e a elas deu uma autorização para prender sem ordem judicial, torturar, matar e fazer desaparecer, entre outras práticas degradantes e ilegais. Hoje em dia se sabe que a cadeia de comando para esses atos ilegais tinha origem nos gabinetes presidenciais. Os livros de direito constitucional consignam que a tortura foi sistematicamente aplicada e virou regra com foros de política pública pela polícia política no período!

Nem poderia ser diferente. A Constituição de 1988 baniu a tortura, considerando sua prática crime insuscetível de graça ou anistia.

O atual presidente da República, desde 2019, vem demonstrando saudosismo pelo regime militar, exaltando suas práticas e características, sem ignorar que a tortura era uma delas. Torturadores notórios foram sempre enaltecidos pelo chefe de governo, inclusive antes de assumir o poder. Ao revés, as tentativas de apuração da verdade histórica e dos crimes cometidos pela ditadura, por exemplo, os esforços da Comissão da Verdade, foram considerados “balelas”, invenções, como se nunca se houvessem verificado os crimes internacionalmente reconhecidos.

Mas o presidente foi mais longe. Fugindo ao dever do Estado de apoiar e fortalecer formas de prevenção e combate à tortura, como o Mecanismo Nacional para Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), criado por lei federal em cumprimento à Convenção contra a Tortura e seu Protocolo Facultativo, editou o Decreto 9831/19. Este, como já tive oportunidade de dizer, enfraqueceu a independência financeira do MNPCT, vulnerou sua independência funcional e, pior, ao dispensar a remuneração dos peritos, afrontou gravemente o espírito da prevenção contra a tortura (a lei exige dedicação integral dos membros do Mecanismo).

O MNPCT sempre fiscalizou a ocorrência de tortura no sistema penitenciário, formulando relatórios para os governos locais, com recomendações para a melhoria das condições das prisões. A quem interessaria o desmonte desse mecanismo, salvo aos que detêm os meios paralelos de controle do sistema? É a pergunta que não cala.

Imediatamente após a edição do decreto, a Comissão Arns e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) representaram ao Ministério Público Federal que, de imediato, ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF) 607.

Em sua sustentação, o IDDD e a Comissão Arns lembraram à Corte que não apenas o Brasil se preocupava com a instabilidade do Mecanismo Nacional, mas igualmente a comunidade internacional. Dias antes do julgamento, o Brasil fora visitado pelos representantes do Subcomitê de Prevenção à Tortura. A eles, o Conselho Nacional de Justiça reportou que apenas 5% dos 56 mil casos de tortura relatados em audiências de custódia são investigados. E que, portanto, a palavra de que o Brasil mantém o apoio ao Mecanismo do Protocolo Facultativo da Convenção Universal deveria ser dita pelo STF, com o adendo de que não se muda a Constituição ou a lei federal por decreto, que a tortura continua a ser banida e o Estado deve respeito ao princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana.

A ação foi julgada procedente (por unanimidade, 11 votos), com resultado de julgamento proclamado há poucos dias, reconhecendo-se a inconstitucionalidade dos dispositivos que tolhiam o agir do Mecanismo Nacional.

No voto guia do julgamento, seguido por todos os demais, o ministro relator Dias Toffoli disse que a transformação do trabalho dos peritos do MNPCT em serviço não remunerado, exonerando-os dos cargos em comissão que ocupavam, alterou de forma substancial a execução das atividades voltadas à prevenção e ao combate à tortura exercidas pelo órgão, que demandam dedicação, tempo e apoio logístico; e que dificilmente serão realizadas em concomitância a outras atividades remuneradas. Acrescentou que o esvaziamento das políticas públicas previstas em lei, mediante atos infralegais, como o decreto, caracteriza abuso do poder regulamentar e contraria a separação dos poderes.

No futuro, poderá ser difícil acreditar a necessidade de a Suprema Corte ensinar regras comezinhas de direito a um presidente da República, para fazer a Constituição prevalecer contra a tortura. Mas, quem viveu o momento e testemunhou parte da sociedade civil afirmar a Constituição da República e o Estado de Direito ao lutar contra o retrocesso imposto pelo atual governo, poderá proclamar, se alguém duvidar do que aqui se contou, como Gonçalves Dias, em I-Juca Pirama: “Meninos, eu vi”.

Belisário dos Santos Jr. é membro fundador da Comissão Arns, membro da Comissão Internacional de Juristas, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo

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