Uma supernova

Os 18 anos da minha irmã são um marco para ela, para mim, para toda a aldeia que se dedicou a mantê-la viva, saudável e alegre

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

No dia em que minha irmã nasceu, a Nasa fotografou uma supernova no universo.

Quando minha irmã nasceu, foi uma das maiores alegrias da minha casa. Na verdade, admito que foi a maior alegria da minha casa, nada superou isso. Minha irmã era cabeluda, expressiva, tinha os olhos muito abertos e sempre que falávamos ela franzia a sobrancelha, como se estivesse reconhecendo nossa voz.

Quando minha irmã nasceu, eu já tinha 18 anos, havia acabado de entrar na universidade e a vida parecia uma porta bem grande, brilhante e escancarada pra mim. Para todos nós. Havia tanta esperança, tanto amor, havia uma casa com cheiro de bebê recém-nascido. Parecia aquelas publicidades de fim de ano de banco: uma família de olhos brilhando, crendo no futuro que havia acabado de chegar.

Imagem do telescópio Hubbke mostra a luz de uma explosão supernova (ao centro) desviada por um aglomerado de galáxias — Foto: Nasa/ESA/STScI

Minha irmã nasceu no fim do outono, com aquela luz bonita de maio. Naquele tempo, ainda existia inverno no Rio de Janeiro, com dias e dias de chuva fina e umidade. Ele teve uma bronquite aos 2 meses de idade e era minha missão, que chegava às 23h da faculdade, passar algumas horas com ela no colo fazendo nebulização, enquanto minha mãe descansava.

Foi a primeira vez na vida que minha mãe, empregada doméstica, teve direito a licença-maternidade. Quatro meses em casa só para cuidar da cria, sem se preocupar com o trabalho. Na época, eu não entendia o quanto isso era grandioso pra ela. Obviamente, quatro meses eram muito menos do que ela e minha irmã precisavam, mas muito mais do que já havia tido nos três filhos anteriores.

Naquele ano, a Vila Isabel ganhou o carnaval do Rio, o primeiro astronauta brasileiro foi ao espaço, foi sancionada a Lei Maria da Penha, o Playstation 3 foi lançado, Yunus recebeu o Prêmio Nobel da Paz, os Rollings Stones fizeram um show em Copacabana, a Beyoncé lançou seu segundo álbum solo e o Lula foi reeleito presidente do Brasil.

Quando eu tinha 18 anos, achava que a porta que estava escancarada pra mim nem existiria para a minha irmã, que, para ela, só existiria o caminho.

Minha irmã fez 18 anos ontem. Ela agora tem exatamente a idade que eu tinha quando ela nasceu, eu tenho o dobro da idade dela. Parece aquela cena de “Interestelar”, especialmente por eu ter passado os últimos anos fora, nos mantendo ligadas principalmente pelo amor que carregamos. Família é escolha, escolha ancestral, afeto (e tretas) de outras vidas. Eu agradeço sempre nosso encontro.

Mas o difícil é perceber que, apesar dos avanços, a porta que estava “aberta” pra mim está cada vez mais estreita para a minha irmã e tantos outros. Segundo o Censo 2022, a maioria dos jovens brasileiros são negros e mulheres e, no Rio, estão em maior número nas periferias. São esses a maioria dos que não estudam e não trabalham, que sofrem mais violência, que têm menos acesso aos bens e serviços públicos.

Os 18 anos da minha irmã são um marco importante para ela, para mim, para toda a aldeia que se dedicou a mantê-la viva, saudável e alegre nesse mundo-de-meu-deus. Mesmo os que não podem se juntar na roda de forma física, celebram a existência, caráter e beleza da nossa criança. Nós conseguimos!

Ainda assim, sinto que poderia ter sido mais tranquilo pra nós e pra ela. Sinto que o Brasil não é o que eu esperei para a maioridade da minha irmã caçula. O que recebemos até agora foram só trocados de uma dívida alta a ser paga, especialmente com os jovens negros e indígenas, para que eles possam brilhar como estrelas.

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