Você tem medo de que?

Eu tenho medo durante quase todo o tempo. Medo de não me fazer entender. Medo de ser meu próprio algoz, por outro lado sei que nada mais carrasco comigo mesma que o silêncio do qual tenho sido refém… sei que calo minhas palavras. Sei que há uma voz muito grave, clara e potente que sempre me lembra de como eu não deveria estar aqui ou que estou aqui com menos mérito que os corpos que se encontram vivões gritando sextou ou somos todos humanos, ao som daquelas coreografias amarelas que combinam bem com o tilintar de suas panelas.

Tenho medo de Trovões, tenho medo das Pilhérias e tenho muito medo dos olhares impiedosos que me comem desnudando a meu corpo como mais um pedaço de carne a ser digerido nas proximidades do Valongo ou de qualquer ribanceira onde parte da minha cor é atirada para putrefação perfurada. Tenho medo dos sorrisos que, nem sempre sob o disfarce da mão, caçoam das minhas veias, essas que não fazem questão de esconder o vermelho do qual se abastecem. Das tripas que não negam a bosta e do peito flamejante em suas vísceras escravizadas. Tenho medo quando estou só e um pouco menos quando não estou. Olho no reflexo do vidro e percebo o terror. O terror agarra a bolsa quando passo apressada para o trabalho, o terror aprisiona a minha pele e tem destruído meu espírito como se eu fosse realmente a máquina selvagem que ele mesmo prega. É verdade o medo está sempre aqui. Não importa o que eu fizesse, ele sempre esteve aqui.

Bem, me parece que o medo é o companheiro mais antigo, me incute o receio do mundo e me diz que tudo me é caro e, logo, minha alma presume, meu corpo não pode passar impune. Quando me calo o medo está. Quando fecho os meus olhos ele se deita em meu peito. Quando me escondo na poeira mofada do armário ele me coloca no colo e me faz gritar, não de prazer. Então que se dane o medo, o silêncio, o armário e toda essa poeira. Eu vou morrer de todo jeito mesmo… No fim de tudo, até aqui, o medo que mais me apavora é o de não dizer as coisas que o próprio medo fez calar. E o seu medo, qual é?

graziely dos reis lemes

lésbica negra

psicóloga,

mestranda em educação pela UFMT


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

+ sobre o tema

Trote da UFMG: crônica da impunidade anunciada

   por  André Karam Trindade Diário de Classe,...

Todos os pretos se parecem, feat. Serena Williams

Acontece quando te dizem que você é parecida com...

Afroperspectividade: por uma filosofia que descoloniza

Entrevista com o doutor em filosofia e professor da...

para lembrar

Seppir sugere treinamento para combater racismo institucional em concessionária da BMW

Rio de Janeiro- O treinamento de funcionários para não...

Funcionário de mercado é demitido após procurar a polícia por racismo

Douglas Ferreira, 18 anos, trabalhava como repositor no supermercado...

The New York Times: A aceitação do horror em mortes cometidas pela polícia do Brasil

Por Simon Romero e Taylor Barnes No Negro Belchior Tradução de...

Polícia reconstitui agressão a vigilante negro no Carrefour de Osasco (SP)

Por: TATIANA SANTIAGO Após quase um ano da agressão contra...
spot_imgspot_img

OAB suspende registro de advogada presa por injúria racial em aeroporto

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) suspendeu, nesta terça-feira (25), o registro da advogada Luana Otoni de Paula. Ela foi presa por injúria racial e...

Ação afirmativa no Brasil, política virtuosa no século 21

As políticas públicas de ação afirmativa tiveram seu marco inicial no Brasil em 2001, quando o governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho sancionou...

Decisão do STF sobre maconha é avanço relativo

Movimentos é uma organização de jovens favelados e periféricos brasileiros, que atuam, via educação, arte e comunicação, no enfrentamento à violência, ao racismo, às desigualdades....
-+=